ELOI FERREIRA DE ARAUJO
Advogado, presidente da Fundação Cultural Palmares e ex-ministro da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR)
A Fundação Cultural Palmares é a representação no Estado brasileiro, que, por força da Lei nº 7668, tem como missão a promoção e preservação da cultura negra e afro-brasileira. São 24 anos atuando em parceria com a sociedade e o movimento negro em defesa dos quilombolas, das religiões de matriz africana e das ações afirmativas com o objetivo de eliminar as desigualdades históricas e as discriminações raciais, étnicas e religiosas.
As recentes conquistas do povo negro são frutos da resistência e da militância dos movimentos sociais. Assim são o Estatuto da Igualdade Racial, lei que determina que o Estado brasileiro adote ações afirmativas para inclusão da população negra, e a decisão do Supremo Tribunal Federal quanto à constitucionalidade do sistema de cotas nas universidades públicas, que agora será incorporada ao quadro de leis nacionais.
É importante destacar também o reconhecimento à memória das personalidades negras brasileiras e dos símbolos e achados arqueológicos, como o ParqueMemorial Zumbi dos Palmares e o Cais doValongo. Os africanos, que para cá foram trazidos e escravizados, construíram nossa identidade com a música, a dança, a religiosidade, a culinária, as festas, a linguagem corporal, a oralidade e a maneira de viver—legado de raízes africanas, que está profundo nos corações e mentes da brasilidade.
A Lei nº 10.639 colocou, na ordem do dia, a cultura negra e afro-brasileira nas escolas. O objetivo é retirar a invisibilidade do negro como agente formador da nossa identidade nacional e elevar a autoestima dos brasileiros. Fato esse que tem sido bem recebido pela nação. Segundo o Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), devido a autodeclaração, aproximadamente 52% da população é composta por pretos e pardos.
Neste mês de agosto, a Fundação Cultural Palmares e a Organização das Nações Unidas pela Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) realizam o seminário internacional Herança, identidade, educação e cultura: gestão dos sítios e lugares de memória ligados ao tráfico negreiro e à escravidão, tem a da linha de pesquisa da Unesco, intitulada A rota do escravo. Estarão reunidos em Brasília historiadores e pesquisadores de diversos países.
Na ocasião, lançaremos a candidatura do Cais doValongo a Patrimônio daHumanidade. É umgesto da maior relevância para a população negra e para toda a nação brasileira. Os portos na África onde os africanos eram embarcados para serem escravizados em diversos lugares do mundo são declarados Patrimônio da Humanidade. O Cais do Valongo será o primeiro porto de chegada com essa deferência. É uma iniciativa que dá ao seminário uma marca especial.
Além disso, o evento permitirá a elaboração de uma publicação dirigida a educadores e gestores culturais, que facilitará a criação de uma rede internacional e a instalação de turismo de memória em torno dos sítios, lugares, monumentos e museus ligados ao tráfico negreiro e à escravidão. Para a Palmares, o encontro também faz parte da preparação do plano de ação para a Década Internacional dosPovos Afrodescendentes (2013-2022), declarada em resolução pela Organização dasNaçõesUnidas.
Ações como essas reforçam a luta contra o preconceito e a discriminação racial. A ideia de democracia racial no Brasil foi construída sob a singularidade de um país miscigenado formado por tradições herdadas dos africanos, onde era celebrada a convivência de negros e brancos. Para sermos os protagonistas da igualdade formal e material como assegura a Carta Magna de 1988, não podemos ignorar o trabalho de 388 anos de escravidão de negros e o legado histórico deixado a todos os descendentes de africanos, que vivem no Brasil. É preciso construir a igualdade de oportunidades, para que todos os brasileiros possam acessar os bens econômicos e culturais.
A efetiva consolidação de uma realidade alicerçada nas diretrizes da igualdade de oportunidades ainda não está completa. Mas com certeza, os avanços contemporâneos demonstram que o sangue de Zumbi e dos quilombolas dos Palmares, a coragem de João Cândido contra a Chibata e a luta de Abdias Nascimento, dentre outras lutas libertárias e heróicas, são contributos inestimáveis para a construção de um país mais justo e mais fraterno.
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Artigo Publicado no Jornal CORREIO BRAZILIENSE no dia 14/08/2012