INTERCÂMBIOS AFRO-LATINOS

Zulu Araújo
Presidente da Fundação Cultural Palmares / Ministério da Cultura

Em recente viagem à Bolívia e à Colômbia, em julho último, o presidente Lula afirmou que a integração da América do Sul depende do Brasil. Isso porque é o país líder da região, é a maior economia e o mais industrializado. Do ponto de vista econômico, é claro que isso interessa ao Brasil. Na perspectiva cultural também, até porque, historicamente, o Brasil sempre preferiu dialogar com a América do Norte e a Europa, dando as costas para os seus vizinhos. Interessa principalmente à Fundação Cultural Palmares/Ministério da Cultura, que o Brasil tenha na América Latina um papel integrador de políticas culturais, principalmente quanto à integração afro-latina.

Todos os países latino-americanos receberam a marca social e cultural dos negros africanos desde sua colonização pelas nações européias, há quatro séculos. É evidente a existência de uma rica cultura afro-descendente na região, que enriquece e integra as diversas etnias.

O professor Emir Sader sustenta que uma das novas modalidades que o racismo assume hoje em dia é o separatismo. Para ele, é “uma forma de tentar delimitar os territórios da raça branca, apropriando-se privadamente de riquezas que pertencem à nação e ao seu povo”. O sociólogo expõe o que ele considera formas privilegiadas do sonho racista e separatista de vidas entrincheiradas, sem misturas das etnias e de classes.

Sabemos da veracidade dessas palavras. Mas também sabemos o valor cultural das misturas de raças e de povos. Por isso, combater o mal da intolerância aponta para um processo de transformação, que se sustenta principalmente no pensamento e na ação daqueles que se dispõem a trabalhar pelo reconhecimento e pelo direito de todos serem tratados enquanto cidadãos plenos de direitos, independente de cor e de classe social.

País pluricultural e pluriétnico, o Brasil deve ter uma compreensão crítica da dinâmica racial contemporânea e olhar novo sobre suas relações com os países vizinhos para um novo cenário de intercâmbio na produção cultural. Nesse sentido, a globalização e os meios de comunicação de massa desempenham papel decisivo para que se estabeleçam condições dinâmicas nessa relação em torno da diversidade cultural. Isso, embora o sistema globalizante possa acarretar a internacionalização tanto do racismo quanto do anti-racismo. Mas aí, é outra história e caberá à nossa capacidade de ação e convencimento vencer mais este desafio.

Historicamente, na América Latina, o que se considera negro é desvalorizado, estigmatizado e sujeito a toda ordem de preconceitos, o que fez com que muitas vezes indivíduos tenham manipulado sua identidade racial, para proteger-se das mazelas do racismo. No Brasil, esse fato pode não mais ser considerado verdade. Pesquisa do Ipea indica que, hoje, o número de pretos e pardos no Brasil já é declaradamente 49,5%. Há pouco, esses números não se revelavam na sua inteireza. Cremos que os importantes avanços políticos nos últimos anos, notadamente a implementação de políticas de ações afirmativas pelo Governo Federal, possibilitaram mudanças significativas para a afirmação da identidade afro.

Nesse sentido é que a Fundação Palmares, parceira de empreendimentos na divulgação da riqueza cultural dos povos afro-descendentes, tem a iniciativa de construir, respeitando a especificidade de cada cultura, uma ferramenta de análise e de reflexão que interaja entre os países da América Latina. Assim é que nasce um site voltado especificamente para a afro-latinidade. Trata-se de uma troca simbólica, mas que vai abraçar a ambigüidade e a complexidade de estudos e de pensamentos da cultura negra nos países da região.

Conhecer a América Latina Negra, com toda a sua diversidade, e dialogar com as experiências de cada país é o objetivo maior da Fundação, que se coloca como intermediadora nessa caminhada para fazer avançar a igualdade de direitos, acessos e oportunidades para todos os afro-descendentes da região.

Assim é que o Observatório Afro-Latino, a ser lançado em breve, será uma experiência ímpar nesse rico e variado mundo da cultura afro-latina.

O Programa é desafiador. Pretende trabalhar nos mais diversos campos da cultura, mas terá como foco central de suas ações a difusão da enorme contribuição civilizatória que os descendentes de africanos trouxeram para a América Latina, apesar das condições trágicas em que viveram por quase quatro séculos.

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artigo publicado originalmente no jornal A Tarde, 05/09/2008