Consciência da Diferença


No início do Século XX, um dos maiores poetas da língua portuguesa, Fernando Pessoa, afirmou em seu poema Mensagem que “Deus quis que a Terra fosse toda uma, que o mar unisse e já não separasse”.

Hoje, no mundo globalizado, alguns podem até dizer que a Terra já é uma, mas, ainda, não se tornou una. Una em sua diversidade. Una em generosidade ante a diferença.

Muitos anos depois, outro célebre português, o sociólogo Boaventura de Sousa Santos, nos trouxe um dos mais lúcidos ensinamentos, segundo ele, ?devemos lutar pela igualdade toda vez que a diferença nos inferioriza, mas também devemos lutar pela diferença toda vez que a igualdade nos descaracteriza?.

Hoje, Dia Nacional da Consciência Negra, é um momento oportuno para refletirmos essa questão. É dia de honrarmos nossas raízes guerreiras, que nos ensinaram a resistir e a nos afirmar pela igualdade. Mas também é dia de honrarmos nossas raízes fraternas, que nos ensinaram a permitir e a lidar com a diversidade. É nesse sentido que a contribuição negra precisa se dizer forte, precisa se dizer completa, não só porque queremos ser iguais, mas porque também queremos o desigual, porque queremos acolher a diferença. A grandeza da existência humana é poder trabalhar com a pluralidade, é poder ter a grandeza de compreender nas diferenças o conjunto da igualdade humana.

Por isso, o dia de hoje é uma belíssima oportunidade para celebrarmos a diversidade como fundamento e valor da humanidade. Também é uma oportunidade para cada vez menos lamentarmos as exclusões e discriminações sofridas pela comunidade negra e, cada vez mais, celebrarmos os avanços alcançados pela sociedade brasileira e pelo Estado para a democracia racial.

Avançamos enquanto testemunho de inovação. Quando, por exemplo, protagonizamos uma mobilização planetária dos países da Diáspora Negra. Avançamos quando ampliamos o horizonte da discussão sobre a negritude, não somente pelo olhar brasileiro, mas pelos olhares dos diversos povos negros do mundo. Avançamos quando colocamos a intelectualidade e a arte negra em evidência, como fizemos neste ano, com a Conferência dos Intelectuais da África e da Diáspora – CIAD.

Avançamos quando nos colocamos no mundo não mais como platéia, mas como atores e autores potenciais da história. Quando conseguimos ser reconhecidos por nossos feitos e nossos jeitos.

Zumbi e tantos outros negros, célebres ou anônimos, tiveram que mostrar ao mundo o valor da diferença pela luta e pela dor. Hoje mostramos ao mundo o valor da diferença pela estética e pelo pensamento, por nossa arte, nossa palavra, nosso argumento e por nossas criações e contribuições ao mundo.

O Brasil, em sua juventude de 506 anos na civilização ocidental, aprendeu a ser diverso na adversidade. Essa qualidade, genuína de um país mestiço, nos foi concedida pelo negro, que nos abençoou com seus sincretismos e nos deu o tempero da mistura.

O Brasil é o que é hoje porque é negro, porque é amarelo, porque é branco, porque é plural. A brasilidade, embora muitos ainda não admitam, é o que é hoje porque é principalmente negra. O negro nos deu resistência e coragem para sermos o que hoje somos, mas também nos deu ginga, cadência e generosidade para permitir que os outros também sejam.

A qualidade do negro está na capacidade de se afirmar não só pela raça, mas pela graça, não só pela luta, mas pela ternura, não só pela régua, mas pelo compasso. A qualidade do negro é trabalhar a diversidade em sintonia com a alteridade. Por essa qualidade procuramos qualificar o mundo e deixar que o mundo nos qualifique. Por essa qualidade procuramos resgatar o sentido de Terra Una.

Curiosamente, na língua tupi-guarani, una significa negro. No duplo sentido aqui figurado, faço então o meu convite para que, juntos, possamos construir a Terra unida, não só pelos mares, mas pelo profundo sentimento de humanidade.

Gilberto Passos Gil Moreira