CULTURAS POPULARES
Alegria e Cidadania !
* Zulu Araújo
Em seu discurso de posse, o ministro Gilberto Gil, provocou o país com o famoso “do in” antropológico, convidando todos os brasileiros a massagear os pontos vitais do corpo cultural do país, que segundo ele estavam momentaneamente desprezados. Gil fez uma referência lapidar para que possamos entender melhor quais são esses pontos vitais: “… ninguém aqui vai me ouvir pronunciar a palavra “folclore”. Os vínculos entre o conceito erudito de “folclore” e a discriminação cultural são mais do que estreitos. São íntimos. “Folclore” é tudo aquilo que, não se enquadrando, por sua antiguidade, no panorama da cultura de massa, é produzido por gente inculta, por “primitivos contemporâneos”, como uma espécie de enclave simbólico, historicamente atrasado, no mundo atual. Não existe “folclore” – o que existe é cultura”.
À primeira vista tal reflexão pode parecer um mero devaneio intelectual ou provocação em torno dos conceitos de folclore e cultura popular. Mas, para os que lidam no dia-a-dia com as manifestações culturais populares e o seu permanente processo de discriminação durante as formulações das políticas públicas, sejam elas de origem negra ou indígena, é como se fosse um colírio nos olhos do amanhã. Esta não é uma discussão semântica, vazia de significados; ela é determinante para indicar os caminhos que devemos trilhar para promover a valorização, a difusão e a preservação destas manifestações.
É com base na afirmação “o que existe é cultura” que está assentada a essência do trabalho desenvolvido nos últimos anos nas áreas das culturas populares no país. Ou seja, o respeito aos valores simbólicos e à diversidade cultural do nosso povo, a democratização do acesso aos equipamentos e recursos públicos, as salvaguardas institucionais enquanto direitos de cidadania, além da criação de instrumentos e meios que levem à sustentabilidade e à circulação dos produtos gerados por estas culturas como elementos importantes da economia da cultura.
Nesse contexto, a realização do I Encontro Sul Americano das Culturas Populares e do II Encontro Nacional de Políticas Públicas para as Culturas Populares, de 14 a 17 de setembro, em Brasília, será uma grande oportunidade para que, nós brasileiros, juntos com os nossos vizinhos sul-americanos, possamos discutir as políticas públicas para o setor, refletir sobre as nossas angústias e dificuldades, na perspectiva da superação, e, de forma articulada e solidária, estabelecer uma agenda política comum, que nos leve à conquista da cidadania cultural plena. Serão doze países, dezenas de gestores culturais, centenas de artistas e quase dois mil delegados trocando experiências e apontando caminhos que norteiem a formulação das políticas públicas para as culturas populares no continente.
Arrisco afirmar que um tema desta agenda será inevitável: o apoio e a ratificação, por todos os países, da Convenção sobre a Proteção da Diversidade e Expressões Culturais, aprovada em 2005 pela Conferência Geral da Unesco, na qual o Brasil teve papel fundamental. Mas, não basta sermos modernos e avançados para fora e continuarmos a reproduzir o preconceito internamente. Faz-se necessário que estes segmentos (culturas populares) sejam olhados e tratados, tanto pelos gestores culturais como pela sociedade, não como meros “arquivos do passado” ou a consciência inculta de um país, mas como um vasto território onde podemos encontrar elementos fundadores da sociedade, seus modos de saber e fazer, suas crenças e seus valores.
As experiências em curso no Brasil indicam este caminho, seja por meio dos “pontos de cultura” que vêm concretizando a democratização dos acessos aos bens culturais nas periferias das grandes cidades, seja por intermédio do projeto “Revelando brasis”, que possibilita aos talentos das pequenas cidades verem suas histórias nas telas, ou ainda pelo programa de cultura afro brasileira, no qual as manifestações artísticas ocupam um lugar especial no enfrentamento das mazelas oriundas da escravidão e do racismo, ainda presente na sociedade brasileira.
Para nós brasileiros, e, sobretudo, para os que trabalham com a cultura afro brasileira, este é um sinal alvissareiro que nos traz alegria, afinal de contas, cultura popular no Brasil tem nome, endereço, carteira de identidade, cpf e DNA, seja ele africano ou indígena. Neste sentido, o mais importante não será discutir as contradições entre o erudito e o popular, mas sim, perceber o espaço das culturas populares como o da afirmação das identidades e do exercício pleno da cidadania.
Axé !
* Zulu Araújo é Diretor da Fundação Cultural Palmares